segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Diário de uma Pedra Lapidada: O Raio X


Passei a enxergar a dor das pessoas ainda bem nova, penso que fui acordada por Deus para  o sofrimento alheio no tempo que passei a fazer visitas para minha mãe em hospitais psiquiátricos, até então era um mundo que eu não imaginava conhecer. Essas visitas me obrigaram a aprender coisas e a fazer coisas que eu não havia feito antes, tive que aprender andar de ônibus  sozinha , conversar com adultos sozinha, resolver problemas sozinha,  nem todas as vezes meu pai tinha tempo de me levar nas visitas, é engraçado pensar em uma criança passando embaixo da catraca do ônibus para ir a um hospital psiquiátrico  e cuidando de assuntos que naturalmente são assuntos de adultos. Quando recordo isso  penso em Jesus criança no meio dos doutores  e de como eu resolvia assuntos importantes sozinha: matrículas em cursos, pagamentos de mensalidades, consultas em hospitais, viagens com amigas ...
Na entrada do Hospital os responsáveis já tinham ordem para me deixar entrar mesmo desacompanhada, quando eu ia sozinha ver a minha mãe, o meu pai me dava dinheiro para comprar  frutas e outras coisas para que eu levasse para ela. O meu pai não era irresponsável e me ensinava como deveria proceder com a minha mãe. Ele me preparou para  viver no mundo se ele não estivesse presente. Todas as vezes que ele conversava comigo e eu pedia que  me acompanhasse  a lugares importantes ele me respondia que um dia ele iria morrer e que estava muito gordo e por isso poderia morrer a qualquer momento e eu precisaria aprender a viver sem ele, a me virar...
Eu realmente levava a sério as suas palavras, e muitas vezes quando criança levantava na madrugada e ia próximo onde ele dormia só para ter certeza que ele estava respirando. Quando  ouvia  ele roncar sabia que estava vivo, quando não ouvia nenhum barulho o cutucava e falava :- Pai? Pai? O Senhor está me ouvindo?
Quando ele acordava e me perguntava o que queria, respondia: - Nada, só queria ter certeza que o senhor está vivo e bem.
 Os pais falam algumas coisas para as crianças e não imaginam que  as crianças levam tudo ao pé da letra. Quantas vezes eu sofri antecipadamente pela morte do meu pai ou avós por causa das coisas que ele me falava...
Nessas visitas aos hospitais psiquiátricos passei a ser atingida por fortes emoções, diria emoções fortes demais para uma criança.
 Uma das cenas mais marcantes foi o dia em que cheguei ao Hospital e encontrei minha mãe com os braços roxos de tanto apanhar das demais internas.
 A minha mãe era bem magra, usava roupas do tamanho de uma criança de 14 anos, quando cheguei ao Hospital e perguntei quem tinha batido nela , ela me mostrou  mulheres bem gordas e fortes e eu chorei imensamente. Achava aquilo uma covardia e a pior das injustiças pois a minha mãe não tinha nem 40 kg. Nesse dia olhei para os seus braços frágeis e não diria que estavam roxos e sim pretos de tanto apanhar, as outras internas queriam roubar uma sandália que dei de presente para ela e ela resistiu, resistiu porém não evitou o roubo. Ela estava com os braços pretos e dopada de remédios e eu imaginei que seus braços deveriam estar fraturados e ela sem condições de falar devido a alta dosagem de remédios. Fui até as enfermeiras e pedi que a atendessem e solicitei um Raio X, elas porém negaram, afirmaram que se a minha mãe estivesse com os braços fraturados não estaria suportando a dor. Não me conformei com a resposta pelo fato dela estar dopada de remédios e chorei desesperadamente de enfermeiro em enfermeiro solicitando um Raio X. Lá estava eu com 12 anos de idade solicitando aos prantos um raio X de funcionário em funcionário no Hospital, nesse dia aprendi a interceder  por alguém indefeso. 
Interceder por alguém indefeso, sem condições de se defender e em situação de injustiça, foi assim que Deus começou a me ensinar a interceder pelos mais fracos e pelos indefesos, chorei imensamente por uma pessoa mais fraca e depois chorei por muitos outros em situação de injustiça e indefesos que encontrei pelo meu caminho.
 Não podia só chorar eu teria que agir, me deparei inúmeras vezes por bloqueios e situações de injustiça  e teria que arrumar forças para resolver o problema. Finalmente consegui chamar uma enfermeira para ir até ela, eu queria mudá-la de Ala, queria um raio X, queria ir embora e deixar ela bem, queria ter certeza que não seria mais agredida.
Nesse dia quando sai do Hospital, me encostei no muro, cai no chão e chorei sem forças pois a imagem de mulheres gordas agredindo a minha mãe, imagem de loucos correndo nus na outra ala, imagem de internos vindo até mim me confundindo com seus familiares ,me chamando de filha, mãe, tia ,irmã  eram forte demais para mim. Eu não suportava ver um interno chegar até mim e me confundir com seus familiares, eles achavam que as frutas que eu levava para minha mãe seria para eles.

 Foi aí que passei a fazer a obra de Deus pois nessas visitas passei a levar frutas para os outros internos e visitá-los como se eles também fossem da minha família. A minha mãe comia bem pouco e eu levava muitas frutas então distribuía quase tudo com o restante dos internos. Ao invés de ter medo dos internos Deus fez nascer em mim um sentimento de misericórdia, depois de um tempo eu não conseguia mais ir para esses hospitais com coisas só para minha mãe, levava cachos e cachos de bananas, sacolas de frutas , tudo com o dinheiro que o meu pai me dava...

Uma realidade que eu tive que conhecer, que Deus me apresentou, a realidade existente  dentro de um sanatório...